17 abril 2006



Em paragens distantes comecei esta missiva. Do outro lado do oceano. Costas de águas quentes, febre de existência, o calor que estala a pele e impede um pensar dolente.
"Os dias passam e a vontade da natureza toca-me subitamente através da sua virtude e não da sua profundidade. Consiste o valor na sua vontade de afirmação, o poder de existir, sem se impor.
Sendo. É desta maneira que a natureza não é igual em todo o lado. Nem mesmo os princípios que estamos habituados a não contrariar por fidelidade à constância da ciência. A saber, a gravidade, a luz, o valor das palavras, do pensamento, o peso do oxigénio.
Não são só os cheiros que mudam.
Momentos nocturnos, sem fronteiras de luz, dançando na praia com meninos que são quase de rua porque é onde passam mais tempo.
Meninos pretos, muito afáveis, que nos contam histórias sobre as famílias e sobre a escola e a capoeira.
Convidam-nos para dançar e perguntam se somos casadas.
Porque eles casam com 15 anos.
N. contou-me que a sua noiva o enganara com outra rapazote e que ele desistira do casamento.
Presenteavam-nos com dobragens de folhas de cana, sem pedir nada em troca, entrelaçavam o verde até ser uma cana de pesca com um peixinho, um gafanhoto perfeito, um botão de rosa.
E depois a lua cheia que gira sem parar. É pelo menos real a vertigem quando me deito na areia ainda quente e olho na direcção da barriga para cima.
A vertigem continua, com a lua quase cheia sob o céu cinzento de anoitecer, a seguir o nosso carro, rente aos campos verdes de cana. Tião, o condutor, sem perder o fio à meada dos caminhos das praias paradisíacas, desfia as nossas curiosidades- os trabalhos mais duros do Nordeste são o trabalho na cana-do-açúcar e a apanha de caranguejos no manguezal. O trabalho que os pobres fazem.
Casas assimétricas sem reboco, as famílias de serão às soleiras, roupa colorida nos estendais perfazem o dia.
O ar quente e o areal tem a extensão dos sentimentos grandiosos. O tempo com as mãos e os olhos cerrados perante o canto dissonante e vivo das cigarras.
Nos dias seguintes, parece ser um urubu de cauda recortada e de negritude placente a passear sobre lugares belos e pobres.
Num outdoor de uma cidade grande podia ler-se "Presta-se serviço funerário a animais pequenos". Numa moldura dependurada à porta de uma casa particular, num povoado de beira de estrada, figurava em letras escantilhadas "Ensina-se matemática".
Era capaz de percorrer o Brasil em busca das suas palavras quotidianas.
Que me apaixonei por isso.

Paris e isto não parecem caber no mesmo século.
Há lugares onde é natural ir e crescer nessas idas e voltas como Paris. Há lugares onde nunca me sentirei bem como turista, lugares onde entre o pobre e o rico há um universo.
Só acabei esta carta aqui mesmo.
Em casa.
De volta outra vez.
Desculpa a demora.