19 maio 2006

Encontro



Há noites
em que me encontro
em que me sei
por momentos ser eu,
não que me procure
ou tenha propósito
necessariamente
de me encontrar,

porque ao fim e ao cabo
me sinto sempre perdido
e o costume de dias sem rumo
generalizou já o meu ser,
eu vagueio ao rumo
de quem na verdade
desconhece qualquer orientação

mas basta um qualquer sinal
uma luz, um cometa
uma voz
um rasgar na escuridão,
e encontro-me.
só então me sei ser:
jamais o que fui
jamais passado
e nunca futuro

amanhã foi palavra que larguei ao vento
e ficamos esquecidos

por vezes encontramo-nos,
eu e o futuro,
e tenho sempre uma sensação de dejà-vu,
passamo-nos ao lado
sem palavras
sem olhares
sem sentir,
a rua é estreita
e os corpos esguios
quanto o tempo permite
às presenças
que se proibem
ao contacto
e ao desejo
não se tocam
mas ficam no chão
rastos separados
e tempos diferentes

sós

hoje, eu
o futuro, amanhã


ficarei esquecido,
não me importo,
num canto do tempo
nas rezas e nas preces
eu, hoje,

sem lágrimas
sem tempo
contas perdidas
nos papeis outrora escritos
quando esperava grandiosidade
e amor
e na mesa do café
deixei um adeus e uma vida
sim, aí chorei
e extinguiu-se o passado.


a noite, outrossim,
é constante do meu ser
vivência dos sonhos
dos idílios
a que me entrego,
filho órfão, eu que
um dia adoptei a noite
abjurei até os pesadelos,
aliás os efialtas
apenas me perseguiram
aos meus oito anos
assombros de uma única noite
de terrores e suores
deles um que não esqueço
e nunca me abandonou
porém de teor irrelevante
para constar
da composição da alma
que componho
numa alquimia
eu que fundo o ouro em cobre
e a alma no nada
e das palavras faço morte
e dos papeis vazio
ao vento as letras
e as contas
números mágicos
desabitados
plenos de nada,
agora


certo dia
naufraguei numa tempestade de luar
e achei-me sem barco
e sem praia
ao sabor das vagas, naveguei
só então me soube no entendimento
do quanto é importante viver
e mesmo aprender a esquecer

- carpe diem!
e eu gozo a noite
não é contradição
mas de verdade
já não conheço o dia

não me sei a haver solstício
ou renascer
de sol que perdi há já muito

entreguei-me à noite intemporal
perdi o temor
da cadência das horas,
e creio-me a vaguear
para além da existência da alma
e pensamento que sou
sob a cobertura da noite
por vezes sei-me contente
eu que toquei já a grandiosidade
e agora sou nada
perdi a lua e o sol
e dos meus astros apenas
restam as estrelas


no céu pinto rastos de cometas
desenho constelações
e recito ao luzeiro
canções de embalar

paro,
sento-me e espero:
creio um destes dias
me encontre de novo
e numa dessas vezes
talvez perceba mesmo
quem sou de verdade
porque aqui estou
e o que é o amor.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Suas palavras tocam a minha alma de modo aveludado, como uma leve carícia, como um doce beijo de adeus! Vc me impressiona! Bjos.

12:43  

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