29 março 2006

Carta, desta vez curta, como em missiva





"A letter is a written message from one person to another. Letters are usually intended to be received by someone far away." - Wikipedia


Olá,

Como estás tu, onde quer que estejas? As premissas obrigam a que pergunte mas não é uma mera pergunta de retórica, gosto sempre de saber como estão os amigos, portanto perguntar-te-ia o mesmo, mesmo que a tal os formalismos das cartas não o exigissem; Claro que te espero bem.

Eu sei, já devia ter escrito, estou em falta; a desculpa do costume: falta de tempo; não é da minha autoria, parece ser desculpa universal, correm quase todos uma maratona diária, a meta essa todavia parece confundir-se com a linha do horizonte, quanto mais tentamos aproximar-nos mais parece afastar-se; sim, a semelhança com uma corrida de loucos não é pura coincidência, tem tudo a ver com a insatisfação inata à generalidade do ser humano; busca-se sempre, de modos vários, por vezes não se sabe o quê ao certo ou o porquê mas busca-se e isso alimenta-nos, é o motor do existir, o sentido de viver. Custa-me a pensar que mesmo assim que há corpos inertes, especados numa natureza pétrea, nada buscam, basta-lhes o serem sem se preocuparem sequer no pensar (acho que se pode dissociar a comum preposição de que ser e existir são sinónimos, estamos muito longe disso, existir, esse sim é indissociável de pensar (resquícios Descartes que paulatinamente teve imenso tempo para chegar a essa conclusão e nos poupa agora a nós tais labores; e afinal não parece ser complicada tal conclusão)); cheguei todavia à conclusão que é irreal tentar lutar contra algo a que a essas pessoas parece ser um ideal de vida, desisto! Vou mandando os meus bitaites quando posso e é tudo, fico-me por isso; se lhes basta isso, paciência.

Já tinha começado esta carta ontem mas tem sido escrita em pedaços e algo apressadamente, que tenho passado por mínguas de tempo como já acima te disse; agora dedico-me a esta costura de alguns retalhos escritos para te enviar a peça por inteiro; não é muito, gostaria de poder falar em outras coisas, mas outras oportunidades haverão.

E resto-me por aqui. O dia, esse, amaina à laia de mais um que abatemos à conta da nossa existência. A noite parece querer surgir e chamar as estrelas numa luta inglória (assim parece ser) contra as nuvens que ameaçam um véu de cinza. Talvez não chova, mas acho que gostava, apetecia-me ouvir o barulho das gotas a tamborilarem os vidros na escuridão da noite.
Despeço-me.


Beijo


27 março 2006

O silêncio segredado


O que são os segredos
senão palavras em silêncio,
em repouso,
escondidas
porque só assim
são valiosas


E segredamo-las
preciosamente
rezadas em devoção
letra por letra
conta por conta
nesse rosário
chamado vida

talvez por isso
as pronunciemos pouco
e valham tanto

São poucas
e simples
diz, podes dizer:
- Casa. Vento. Dia. Espaço. Silêncio.
mais alto!
podes até gritá-las,
são ainda teu segredo
não receies,
no vácuo do silêncio
elas continuam tudo para ti
que as rezaste
por vezes até em dor.
O mundo esse é vão,
na futilidade das jóias
esqueceu o valor do silêncio
guardador de palavras
de perfumes
e de almas.

23 março 2006

Sem nome como o espaço entre as palavras

E agora por isso. Por contarmos tantos segredos. Às vezes gostava de não falar para que os outros os adivinhassem. E de só usar os nomes das coisas para as nomear. E de as nomear pouco.

Casa.
Vento.
Dia.
Espaço.
Silêncio.

(Há uma palavra para silêncio.
É enorme o silêncio.
Como é que há um nome para designar o silêncio?
Porque damos nomes a tudo?)

21 março 2006


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição


Mário Cesariny