28 abril 2006

Azul de vertigem, azul de revolução





Por vezes apetece-me repelir o sol, saudar a negritude, violentamente cegar-me negando-me a qualquer réstia de luz para talvez me achar, para encontrar o meu eu mais puro sem mácula; que a luz queima e mancha. Tento aliviar o ardor num esfregar contínuo dos olhos na esperança que se afastem todos os vislumbres de memória dos dias e a vista alcance finalmente o infinito. Um dia sei que a minha alma atingirá paz, no entretanto rejo-a pela revolução, num eterno reconstruir, num eterno acrescer.

Sento-me na berma do precipício, ao fundo sinto as águas revoltas numa espuma dorida às investidas do vento; Inspiro todo o ar do mundo como o mesmo fosse acabar no momento seguinte e a eternidade se exaurisse ao toque do sol na água, abro os braços e deixo-me ir sem olhar. Não anseio a aurora, antes o sol-posto; A vertigem toma conta de mim, a vertigem e o azul profundo; É preciso que assim seja para que o espírito renasça e se refaça, sempre uma outra vez. Solto de todas as vezes um último adeus sempre que as águas me tocam e de novo o baptismo cerimonial me renova: morro para matar e só assim poder fazer viver a alma que se quer eterna. Sei que cresci, em cada vez, mais que na vez anterior. Levanto-me devagar, o processo é sempre confuso e, à excepção da vertigem, lento. Sinto a areia da praia sob os dedos dos pés e um vai e vem de ondas pequenas. Agora a paz momentânea. O mar acalmou e a lua reina sobre a paz refeita. Deito-me e aconchego-me, moldando o corpo às areias, diluo a alma na noite e nas canções do mar: agora posso adormecer.

24 abril 2006

acordar no mar

Fecho os olhos. Posso estar deitada na cama, desfeita de hoje de manhã, quente de hoje de manhã, apesar de não conseguir sentir o meu calor, devo-o exsudar, pelo menos quando dava as mãos a alguém e não era Inverno sentia muito calor e comichão nas palmas das mãos e então gotículas se formavam no centro da concha e a cócega aumentava, e inventava uma paisagem para apontar e dizia
Olha que bonito
pássaro
ou
prédio
Não gostava era de sentir aquele calor híbrido nas mãos. As minhas mãos quentes envergonhavam-me.

Agora já não sei se chego para aquecer a minha cama, mas presumo que sim, não acordo de noite, esvaída de sonhos ou a tremer.
Estava na parte em que me deito de costas e não interessa onde estou, interessa onde vou e quanto mais tempo lá conseguir ficar melhor.
Flutuo como uma mulher morta e sem memória,
à superfície de uma massa
de água
presa por um fio muito fino
à minha identidade.

Sabe bem abandonarmo-nos.
De quando em vez.
Como se pesássemos por breves instantes o mesmo que uma folha de papel, pronta para receber a história de uma vida através de uma fórmula infintamente aleatória.

Volto aqui
o fundo do mar como no búzio gigante que a minha avó trouxe de Moçambique
e que tinha uma capacidade admirável, o Oceano Índico lá dentro.

A verdade é que se sonho que sou leve assim
Percebo a vida

22 abril 2006

A praia, a lua e a amante vestida de luz


Erro meu de te pensar ainda por cá quando já estavas por terras de Vera Cruz. Não faz mal e é bom saber-te de novo por cá.


Presenteias-me com cheiros, calor e histórias como só tu sabes contar. Gosto dos teus quadros porque me fazes sentir lá, dentro deles; sabes, consigo até ouvir as vozes, os contos e os cantos e sinto-me a rodopiar, eu que sempre fui péssimo dançarino, nessas danças de palavras e alegria. Sabes, depois, talvez cansado de dançar ou talvez atingido pela vergonha da inexperiência, sento-me no areal ao som desse mar de paz e deixo-me inundar pela noite e pela acalmia mágica da lua, senhora minha; então adormeço e sonho o meu tempo de criança quando era inocente e não me tentava turtuosamente enganar, não havia ilusões, o tempo era infindável e tudo era possível, até ser feliz. Obrigado do fundo do coração, minha amiga, por me fazeres lembrar, nem que seja por momentos, de saber um dia ter sido feliz.

Paris é talvez diferente, com outras paisagens construídas, outras gentes e palavras quotidianas escritas de outro modo. Vou-te confessar um segredo: Paris seduz-me só pela pronúncia do nome; é uma amante fogosa desde que me recordo de a conhecer, enfeitiça-me na sua sonoridade peculiar, uma voz de corista de cabaret, e inebria-me envolvendo-me em perfumes que só a ela lhe conheço. Quando a encontro sabe sempre como me seduzir. Quando parto não sinto que sou eu a abandoná-la no quarto mas que acordo com o lugar vazio ao meu lado e uma carta sobre a mesinha de cabeceira em que ela escrevinhou apressadamente logo após se vestir e antes de fechar silenciosamente a porta: - até à próxima.
No íntimo sinto sempre que haverá uma próxima vez até que um dia ela queira ficar.


Devo dizer-te que as histórias, nas tuas palavras, me soam geralmente como quadros (já o referi acima); tento vê-los como fotografias (caio sempre nessa tentação quando leio uma história, possivelmente devido à minha paixão pela fotografia) mas não as consigo enquadrar entre a abertura e fecho do obturador, sinto sempre o cheiro sempre das tintas e as cores misturadas nas palavras; é um modo muito pessoal de ler as histórias mas gosto de as sentir assim. Há todavia uma história tua que se desenquadra do que acabei de dizer e que gosto de reler de quando em vez pelo belíssimo instantâneo que conseguiste: passageiros.
Gostava de te lançar um dia um desafio que consistiria no inverso: saber a história que encontrarias numa fotografia e as palavras que a construiriam; gostaria muito de ver o resultado. Depois deixa-me saber a tua opinião.


E à parte de tudo isto como te sentes de volta à labuta? Custa, eu sei, mas saberá sempre bem, por certo, saborear de novo os entardeceres do Tejo, os sons e os cheiros desta cidade que um dia, de um modo diferente de Paris, aprendi a amar.


Bem vinda!
Beijos.


17 abril 2006



Em paragens distantes comecei esta missiva. Do outro lado do oceano. Costas de águas quentes, febre de existência, o calor que estala a pele e impede um pensar dolente.
"Os dias passam e a vontade da natureza toca-me subitamente através da sua virtude e não da sua profundidade. Consiste o valor na sua vontade de afirmação, o poder de existir, sem se impor.
Sendo. É desta maneira que a natureza não é igual em todo o lado. Nem mesmo os princípios que estamos habituados a não contrariar por fidelidade à constância da ciência. A saber, a gravidade, a luz, o valor das palavras, do pensamento, o peso do oxigénio.
Não são só os cheiros que mudam.
Momentos nocturnos, sem fronteiras de luz, dançando na praia com meninos que são quase de rua porque é onde passam mais tempo.
Meninos pretos, muito afáveis, que nos contam histórias sobre as famílias e sobre a escola e a capoeira.
Convidam-nos para dançar e perguntam se somos casadas.
Porque eles casam com 15 anos.
N. contou-me que a sua noiva o enganara com outra rapazote e que ele desistira do casamento.
Presenteavam-nos com dobragens de folhas de cana, sem pedir nada em troca, entrelaçavam o verde até ser uma cana de pesca com um peixinho, um gafanhoto perfeito, um botão de rosa.
E depois a lua cheia que gira sem parar. É pelo menos real a vertigem quando me deito na areia ainda quente e olho na direcção da barriga para cima.
A vertigem continua, com a lua quase cheia sob o céu cinzento de anoitecer, a seguir o nosso carro, rente aos campos verdes de cana. Tião, o condutor, sem perder o fio à meada dos caminhos das praias paradisíacas, desfia as nossas curiosidades- os trabalhos mais duros do Nordeste são o trabalho na cana-do-açúcar e a apanha de caranguejos no manguezal. O trabalho que os pobres fazem.
Casas assimétricas sem reboco, as famílias de serão às soleiras, roupa colorida nos estendais perfazem o dia.
O ar quente e o areal tem a extensão dos sentimentos grandiosos. O tempo com as mãos e os olhos cerrados perante o canto dissonante e vivo das cigarras.
Nos dias seguintes, parece ser um urubu de cauda recortada e de negritude placente a passear sobre lugares belos e pobres.
Num outdoor de uma cidade grande podia ler-se "Presta-se serviço funerário a animais pequenos". Numa moldura dependurada à porta de uma casa particular, num povoado de beira de estrada, figurava em letras escantilhadas "Ensina-se matemática".
Era capaz de percorrer o Brasil em busca das suas palavras quotidianas.
Que me apaixonei por isso.

Paris e isto não parecem caber no mesmo século.
Há lugares onde é natural ir e crescer nessas idas e voltas como Paris. Há lugares onde nunca me sentirei bem como turista, lugares onde entre o pobre e o rico há um universo.
Só acabei esta carta aqui mesmo.
Em casa.
De volta outra vez.
Desculpa a demora.

06 abril 2006

Salut


Olá,


Eis-me de novo pelas lusas terras, com as baterias um pouco mais carregadas (ou será descarregadas? nunca compreendo bem o efeito das férias em mim). De qualquer modo Paris é sempre Paris venha-se de lá extenuado, exasperado, stressado ou simplesmente preenchido, é uma cidade a que pertenço definitivamente (numa daquelas reencarnações, em que já te disse não acreditar, terei sido por certo parisiense e terei vivido em Montmartre, quase de certeza na Place Emile Goudeau junto ao Bateau-Lavoir, em pleno início de século XX (perdoa-me a soberba da escolha do tempo e lugar mas não me consegui impedir, foi mais forte do que eu possivelmente porque parte de mim se sente permanentemente lá e as vivências seriam mais do que marcantes).
Mas deixo-me de falar de mim e de Paris (sobre Paris teria sempre assunto, sobre mim os tópicos acabarão sempre na efemeridade de umas quantas palavras e por isso restrinjo-me ao momento que vai passando).
Diz-me antes de ti, não tens dado notícias. Sei que deves andar atarefada na eminência da tua viagem e por certo o tempo encurta, acumula-se as minuências que ateimam sempre em aparecer quando tudo já se espera concluído; mas o que seriam as viagens sem tudo isto? já fui de planear tudo mas acabei por desistir, agora preparo apenas o essencial e deixo o resto ao desígnio dos deuses, resta-me sempre algo de novo.
E termino mais uma curta missiva que te escrevo, desta vez de uma biblioteca (o meu acesso à internet em casa teima em não funcionar), constrangido pelo tempo de utilização a que me limitaram.
Fico assim na espera das tuas palavras, antes da tua partida, nem que seja apenas para saber como te encontras.

Beijos